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Peregrino

24 dez

Eu tenho o hábito de perscrutar os céus com os olhos o tempo todo, mesmo quando não estou voando. Nuvens, pancadas de chuva, uma frente fria ameaçadora, um halo colorido em torno do Sol, um fim de tarde avermelhado pela fumaça… há sempre alguma coisa interessante no ar. O céu é uma galeria de arte.

Um dia desses, o que chamou minha atenção foi a visão de dois dardos pintados de marrom claro e escuro em faixas horizontais, que passaram feito raios diante da minha janela. Ao abrirem as asas, preparando-se para pousar no alto do prédio onde moro, mostraram contornos que eu jamais vira de perto, mas que saberia identificar num piscar de olhos.

Diferentes dos gaviões que estou acostumado a ver o ano todo, com suas asas elípticas e corpo esbelto, estes pássaros possuíam asas em delta com um corte na parte de trás (bordo de fuga para os aviadores). O gavião parece um Spitfire da Segunda Guerra. As pontas de asa arredondadas, bem no centro do corpo. Estes dois tinham asas de um moderno F22 Raptor. Desenho mais arrojado, feito para altas velocidades e vôos de grande distância. Eram falcões peregrinos.

O Falcão Peregrino é uma ave nobre, que eu admiro desde os 6 anos de idade. Lembro de uma coleçao enorme de livros brancos, chamada “Os Bichos Evoluem”, que eu ganhara antes mesmo de aprender a ler. Lá havia um desenho dos animais mais velozes do planeta. Pelo chão, o Guepardo atingia 100km/h. Pelo ar, o Peregrino ultrapassava os trezentos. Lembro da minha sensação quando vi aquela figura. O mergulho, a velocidade, a liberdade. Aquilo tudo me arrepiava. Queria ser um deles.

Anos se passaram e, sem lembrar muito dos falcões, conquistei minhas próprias asas. Me apaixonei por completo pelos ares e pela aviação, e fiz do céu a minha casa, meu templo e meu trabalho. Mas nunca mais ouvi falar do bicho, até que ele apareceu em Porto Alegre, dormindo 3 andares acima do quarto de minha mãe.

Exímio caçador, o Peregrino pegava pombos, morcegos e outros animais em pleno ar. Seu estilo de vôo é elegante e preciso, e ele agarra suas presas sempre no primeiro bote. Se a andorinha inventou a acrobacia aérea, o Peregrino é o criador do combate aéreo. Depois que ele define o alvo, é difícil escapar.

Ele migra sempre no sentido do verão, partindo dos Estados Unidos para o Brasil no começo da nossa primavera e chegando aqui sempre no final de novembro. Costuma escolher um local para ficar e retornar nos anos seguintes. Milhares de km voando para alcançar a mesma varanda, o mesmo telhado, todos os anos.

Minha mãe ficara encantada com as passagens velozes e os gritos na madrugada, mas preocupou-se com os vizinhos humanos, que em sua plena estupidez poderiam considerar um problema os restos da caça do Peregrino, ou o seu canto agudo noite a dentro. Ela produziu até um panfleto educativo sobre a beleza e os hábitos do viajante, com a intenção de colocar um em cada caixa de correio do condomínio. Mas acabou recolhendo-se ao silêncio para justamente não despertar a atenção do monstro destruidor da vida que habita as cidades. Gente que “limpa” a calçada arrancando as pobres gramíneas e ervas que se esforçam para crescer na selva de pedra e concreto. Que vê num ser sagrado como um lagarto ou uma coruja um monstro abominável… Deviam olhar-se no espelho.

Eu ouvi os relatos dela e desejei muito estar lá pra ver o pássaro mesmo que de relance. Morava fora de Porto Alegre na época, e tive de me contentar com a narrativa à distância. Alguns anos se passaram até que eu pudesse, agora em Campinas, observar de perto meu tótem alado.

Nos primeiros dias, a dupla de falcões ficava por horas de guarda no prédio em frente ao meu, e tentei inutilmente fotografá-los com minha camerazinha. Ai, que falta faz uma Cannon profissional e uma lente de uns 350mm nessas horas!!! No ar é impossível pegá-los. A aproximação deles para o telhado do prédio começa uns 10m abaixo, 50m distante, num vôo reto para a parede a cerca de 50km/h. Então, puxam com toda força para cima, abrindo as asas, reduzindo o enflechamento (a inclinação das pontas para trás) e aumentando a sustentação. Nesse momento passam rentes à minha janela, abrindo totalmente as asas e exibindo suas lindas cores. Nada de azul, vermelho ou algo chamativo. Apenas tons discretos que se fundem com a paisagem. Quem é letal não se exibe.

Depois de um tempo passei a ver apenas um deles, e fiquei me perguntando o que teria ocorrido com o outro. Me preocupava com eles. Teriam se separado? Quem ficou por aqui, seria uma fêmea com ninho? Ou pior, será que um deles morreu? No prédio em frente só havia urubus. Teriam eles tomado o espaço dos falcões?

Para o meu alívio, hoje descobri que os dois ainda estão por aqui. Minhas janelas abrem-se para noroeste, e os dois estão caçando mais para leste do meu condomínio, fora da minha vista. Além disso, pude ver que enquanto um sai para caçar, o outro está ficando mais junto ao prédio. É bem provável que tenham feito um ninho. Pelo menos estou torcendo muito pra isso.

Identifiquei a janela mais perto da rampa de decolagem dos dois, depois de uma hora de pescoço virado pra cima observando suas rotas, seus chamados e suas passagens cortando entre os prédios, atrás de uma pomba-rola apavorada. Pra sorte dela e meu azar, não os vi com presas nos pés ou no bico. Espero conseguir ver algo assim ainda, ou conseguir algumas fotos. Mas não tive coragem de bater no meu vizinho do andar de cima e contar pra ele que há um casal de belas aves em seu parapeito. Tal como minha mãe, temo o homo-sapiens e sua estupidez.

Que meus amigos emplumados recebam minha gratidão de longe, pois sua presença ilumina meus dias. Que façam bom uso desta estranha área de caça, que a cidade ainda possa ser um bom destino, e que partam em segurança quando a hora chegar. Vou passar o inverno olhando para o norte, viajando em pensamento com eles, e esperando revê-los no ano que vem.

 

 
2 Comentários

Publicado por em 24/12/2010 em Insight

 

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2 Respostas para “Peregrino

  1. la mamma

    24/12/2010 at 20:01

    Texto belíssimo, uma justa homenagem a essas aves maravilhosas! A gente consegue vê-los no teu texto, voar com eles!

     
  2. mongevoador

    12/12/2011 at 06:37

    Uma atualização importante: o casal de peregrinos voltou à minha janela este ano, assim que os dias quentes de novembro ganharam força. Estão lindos e sadios, morando no mesmo prédio, chegando na mesma época, me dando mais um verão de alegria pela sua presença.

     

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